Senador, a sua caixa d’água não importa
Graziella Guiotti
09 de maio de 2019 | 16h42
Texto escrito em parceria com Érica Coutinho, advogada trabalhista e mestre em Direito e Políticas Públicas, e Milena Pinheiro, advogada trabalhista e mestre em Direito.
O senador Vanderlan Cardoso (PP-GO) disse em Plenário que o amianto, ou asbesto, não é perigoso para a saúde, uma vez que ele mesmo tem 56 anos e nunca sofreu por ter bebido água de caixa d’água feita do material. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), liderou uma comitiva que visitou Minaçu, município goiano que hospeda a mina de amianto de Cana Brava. A comitiva contou ainda com Ronaldo Caiado, governador do estado e cinco vezes deputado pelo mesmo estado, ex senador e médico de formação. Estavam ainda o saudável senador Vanderlan Cardoso, além dos senadores Luiz do Carmo (MDB-GO) e Chico Rodrigues (DEM-RR), e deputados estaduais e federais.
Segundo o senador Cardoso, o objetivo da comitiva foi o de sensibilizar o STF para a situação dos trabalhadores da mina. A mina é de propriedade da Sama/SA Minerações Associadas, responsável pela exploração e beneficiamento do amianto, que, por sua vez, integra o Grupo Eternit. Quase 400 trabalhadores estão em férias não remuneradas e a empresa Sama alega que quase 2,8 mil habitantes da cidade dependem da mina direta ou indiretamente. O município também tem nos impostos da empresa uma grande fonte de receita.
No STF, a discussão sobre o uso do amianto no Brasil ocorreu, numa primeira etapa, entre os anos de 2001 e 2003, no julgamento das ADIs 2396 e 2656. Na ocasião, entendeu-se que o tribunal deveria se afastar da análise dos efeitos danosos do mineral.
O debate, contudo, reabriu-se a partir do ano de 2004, quando a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria ajuizou duas ações diretas de inconstitucionalidade contra leis que baniam o amianto nos estados de Pernambuco e do Rio Grande do Sul. Nos anos seguintes, foram ajuizadas outras ações contra leis de outros estados.
Em 2008, foi indeferida liminar na ADI 3937, o que consistiu, na prática, na manutenção de lei do Estado de São Paulo restritiva ao uso do amianto. No julgamento da liminar, embora a discussão principal tenha sido sobre competência legislativa dos estados e da União, vários elementos já estavam postos no voto do ministro Joaquim Barbosa: a existência de doenças causadas pelo amianto, como asbestose, câncer de pulmão e mesotelioma; a evidência de que não há níveis seguros para a utilização do amianto, inclusive do tipo crisotila, e a existência, já àquela época, de fibras alternativas no mercado.
Essa discussão persistiu, no Supremo, por mais de dez anos. Nesse meio tempo, inclusive, foi realizada audiência pública, em que foram discutidos fartamente os efeitos deletérios da exploração econômica da crisotila no Brasil e no mundo.
Somente em novembro de 2017, o STF decidiu definitivamente a questão. No julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade mencionadas, reconheceu-se que a lei federal que antes permitia o uso controlado de amianto no Brasil passou por um processo de inconstitucionalização, decorrente da “alteração nas relações fáticas subjacentes à norma jurídica”. Significa que se, à época da edição da lei, havia dúvidas sobre a extensão dos riscos do uso da crisotila, no momento do julgamento, ao revés, verificava-se um “consenso em torno da natureza altamente cancerígena do mineral e da inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura”. Com isso, o Supremo concluiu pelo banimento do amianto em todo Brasil.
Menos de um mês depois, no entanto, o lobby da indústria operou de modo a obter a suspensão dos efeitos da decisão até publicação do acórdão, sob a alegação de que haveria uma série de riscos inerentes à “abrupta” paralisação das atividades em Minaçu-GO. A publicação só ocorreu em fevereiro de 2009, o que conferiu ao Grupo Eternit pouco mais de um ano para adequar-se ao banimento.
Paralelamente, menos de quatro meses após o julgamento do Supremo Tribunal Federal, em março de 2018, o Grupo formulou pedido de recuperação judicial visando à superação de crise econômica-financeira. Anos antes ao pedido de recuperação judicial, Eternit era amplamente conhecida por distribuir dividendos. Em 2012, por exemplo, foram pagos mais de setenta milhões a título de dividendos e juros sobre o capital. No mesmo ano, o grupo registrou lucro líquido de mais de cem milhões de reais.
As razões que fundamentaram o pedido de recuperação judicial diziam respeito, dentre outros motivos, ao posicionamento do STF sobre a proibição do amianto no Brasil. A empresa alegou, ainda, que tentou diversificar as atividades promovendo o uso do polipropileno como alternativa para fabricação dos artefatos que continham amianto. No entanto, o processo de troca de matéria-prima teria se mostrado complexo, afetando a produção e as receitas.
A dívida debatida na recuperação judicial chega à cifra de mais de R$ 230 milhões, contabilizadas diversas espécies de créditos. No caso da classe de créditos trabalhistas, mais de 60% da dívida é composta de indenizações fixadas em ações judiciais propostas por trabalhadores que, em decorrência do contato com amianto, desenvolveram doenças gravíssimas como a asbestose e o câncer de pulmão.
O plano de recuperação judicial prevê que os valores de créditos trabalhistas que não ultrapassarem duzentos e cinquenta mil reais serão pagos à vista. Os valores que excederem esse montante serão pagos mediante operação de aumento de capital social com a emissão de novas ações. Tal manobra tornará os credores trabalhistas verdadeiros acionistas da empresa.
A assembleia geral de credores está marcada para o dia 29/05/2019. Caso o plano de recuperação judicial seja aprovado, inicia-se a nova fase da recuperação: a efetiva quitação das dívidas.
No plano do STF, desde fevereiro de 2019, com a publicação dos acórdãos relativos ao banimento do amianto no Brasil, a indústria voltou a pressionar para obter novo e injustificável elastecimento de prazo para encerramento de suas atividades em Minaçu-GO. Foram opostos embargos de declaração nas ações, com pedido de efeito suspensivo, sob nova justificativa de necessidade de tempo para adequação à determinação do STF – conhecida, pelo menos, desde novembro de 2017 e debatida, na mesma instância, há muito mais tempo. Querem evitar consequências da “surpresa” para seu empreendimento e seguem negando o consenso científico em torno do efeito altamente cancerígeno da crisotila.
A ida dos parlamentares a Minaçu-GO é parte desse esforço. Pouco mais de dois meses atrás, uma comitiva semelhante, composta por todos os deputados federais e por dois dos senadores de Goiás, visitou a ministra Rosa Weber, relatora de uma das ações diretas de inconstitucionalidade, para pressioná-la a conferir o efeito suspensivo pleiteado.
Senador, a sua caixa d’água não importa. A longevidade de alguns indivíduos que fumam não comprova que o cigarro faz bem à saúde. Não é aceitável que numa democracia representativa um parlamentar eleito justifique suas posições com base em falsas premissas técnicas. Não é razoável que no sistema presidencialista de separação de poderes um grupo de senadores, que representam um ESTADO, atue como grupo de pressão EMPRESARIAL junto ao STF.
Veja mais em: