Seis meses de governo: a política externa “sem conotação ideológica”.
Joyce Luz
09 de julho de 2019 | 13h10
*Texto escrito em parceria com Thiago Godoy Gomes de Oliveira; Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), Pós-Graduando em Globalização e Cultura pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e Bacharel em Relações Internacionais pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).
O termo “política externa” nunca foi, historicamente, um tema recorrente nos debates presidenciais e em anos eleitorais no Brasil: saúde, educação, segurança e, principalmente, a economia sempre tomaram frente nas pautas prioritárias a serem discutidas. Comparado aos Estados Unidos, no qual a foreign policy é um tema diariamente abordado na mídia e na opinião pública, a indiferença brasileira ao tema é facilmente compreendida em relação aos níveis de prioridade. Se as relações comerciais com a China vão bem, ou se há uma crise nas relações com a União Europeia, pouco importa. Como priorizar temas internacionais quando mais de metade da população não têm acesso a saneamento básico? De qualquer forma, relações comerciais e diplomáticas, mesmo que ignoradas em anos eleitorais, possuem um impacto expressivo na contabilização da balança comercial brasileira. Mesmo não sendo um tema crucial, a política externa – em meio a polarização política recorrente na sociedade brasileira – ganhou certa importância no que tange as relações com determinados Estados com governos de extrema esquerda, como no caso de Cuba e especialmente no caso venezuelano. Sendo o governo petista acusado de priorizar a ideologia em suas relações exteriores, Jair Messias Bolsonaro, após sua eleição, prometeu uma aproximação de diversos países com uma abordagem sem “conotações ideológicas”. Após seis meses desde o início de seu mandato, as medidas adotadas por Bolsonaro correspondem a sua antiga promessa?
Mesmo antes de tomar posse, uma das primeiras medidas externas que iria tomar seria transferir a embaixada de Israel para Jerusalém – realizando o mesmo movimento que o presidente norte-americano, Donald Trump. Transferir a embaixada para Jerusalém, na prática, somente traria uma aproximação maior com Israel – o que não seria péssimo – e um choque nas relações comerciais e políticas com países árabes, sendo estes parceiros comerciais de longa data no comércio da carne bovina halal. Aproximar-se de Israel, no escopo de uma política externa pragmática, deveria materializar-se em ações que não afetassem relações já estabelecidas com antigos parceiros. Historicamente o Brasil sempre adotou uma postura de neutralidade no conflito árabe-israelense, obtendo ganhos políticos e comerciais de ambas as nações. Mesmo voltando atrás e anunciando que abriria somente um escritório comercial para Israel nessa cidade, há claros sinais de que as relações foram momentaneamente abaladas e deixa um futuro incerto acerca desses parceiros comerciais. Na atual conjuntura econômica brasileira, o Brasil não detêm o mesmo poder e capacidade econômica de Trump, por exemplo, para arcar com custos de uma medida puramente ideológica.
Compreender a inconsistência no discurso e na prática da política externa atual requer abordar duas figuras cruciais: o chanceler, Ernesto Araújo, e Olavo de Carvalho, ex-conselheiro de Jair Bolsonaro. De certa forma, essas duas figuras se complementam, uma vez que, assim como o presidente e seus filhos, Araújo foi altamente influenciado pelos ensinamentos políticos e filosóficos olavistas, produzindo inúmeros artigos acerca da decadência moral e política do Ocidente – argumentando que Trump seria a única salvação internacional –, da necessidade de se trazer questões de fé para a esfera política e do combate a onda do “globalismo esquerdista”. Em contrapartida, Olavo de Carvalho retribuiu a promoção que ganhou dentro do Itamaraty afirmando que, por conta de Araújo, ainda havia “vida inteligente no alto funcionalismo público brasileiro” indicando o então diplomata para a posição de chanceler no governo de Bolsonaro. Dentre as declarações de uma política externa menos responsável e muito ideológica, Araújo afirmou que valores como a fé cristã e a família serão incorporados a diplomacia brasileira, uma vez que o país se acostumou com uma política exterior “sem bússola moral, onde não existe o bem e o mal”. Além disso, sinalizou um distanciamento com a União Europeia e, especialmente, com a China, já que, segundo ele, o país não pode reduzir a política externa a política comercial, “vendendo a alma” nesse processo.
Mais recentemente, a atual crise venezuelana tomou parte do debate político e, consequentemente, das prioridades da política externa de Bolsonaro. Primeiramente, cabe esclarecer alguns pontos: com a deterioração econômica, social e política do governo de Nicolás Maduro nos últimos anos, a proximidade comercial e política com a ultima gestão petista ainda persistiu. A falta de crítica ou um distanciamento ideológico faziam-se necessários nesse período e no cenário recente. O partido – em um exemplo histórico clássico de priorização puramente ideológica frente a pragmática – ainda insiste na proximidade com o governo de Maduro. Críticas pontuais ou um distanciamento estratégico se fazem necessários – arrastar o país para dentro de um conflito, não. Mesmo Bolsonaro argumentando que a participação direta ou indireta do Brasil em uma intervenção na Venezuela é “próxima de zero”, seu chanceler tem demonstrado uma disposição de alinhar-se a decisão que os Estados Unidos venham a tomar acerca de uma intervenção na Venezuela. Além disso, mesmo sem deixar claro sua decisão, Bolsonaro tuitou no último dia de abril que “A situação da Venezuela preocupa a todos. Qualquer hipótese será decidida exclusivamente pelo Presidente da República, ouvindo o Conselho de Defesa Nacional” – sendo corrigido posteriormente por Rodrigo Maia que afirmou que, constitucionalmente, cabe ao Congresso Nacional. Frente as prioridades domésticas a atitude mais pragmática – de condenar o governo venezuelano – parece ser vista como uma omissão pela ótica de Bolsonaro e de Araújo.
Criar uma política doméstica ou exterior sem base ideológica é impossível. A ideologia, em seu significado mais bruto, seria a compilação de um conjunto de ideias, doutrinas, visões de mundo e pensamentos que se orientam para ações, sejam elas sociais ou políticas. Cada administração teve a presença de uma ideologia como base para a concepção de suas políticas. Entretanto, longe de ser puramente ideológica, a politica exterior brasileira sempre possuiu um histórico de manter certa neutralidade e priorizar decisões mais pragmáticas que garantiriam ganhos políticos e econômicos para o país.
Óbvio que cálculos errados resultaram em perdas econômicas para o Brasil – e é claro que esses erros devem ser analisados, compreendidos e, futuramente, evitados. Contudo, cabe nos perguntarmos: esses erros e perdas originaram-se de uma política formulada com o objetivo de ganhos futuros claros ou de simples primazia ideológica? Frente as decisões e declarações da atual presidência, fica mais claro em qual das opções a política externa de Bolsonaro entrará para os livros de história.